segunda-feira, setembro 14

Eu Sei, Mas Não Devia.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se costuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, a gente esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra a gente aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz aceita ler todo dia da guerra, dos números da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: - hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que se pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão a assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. A gente se acostuma a ficar calado, quando se precisa dizer alguma coisa, e engole seco. Se o cinema está cheio a gente senta na primeira vila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, agente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir mais cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não ralar na aspereza para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma...

By Colassanti

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